O diagnóstico de câncer deixou de ser uma sentença de morte. Com os avanços da medicina, mais notadamente da oncologia de precisão, as esperanças de cura são cada vez maiores. Entre 80% a 90% dos cânceres jovens são curáveis. Sim, há vida após o câncer. E muita. O suficiente para retomar sonhos interrompidos pelo tratamento, como o de ser mãe ou pai. Sonhos viabilizados pela oncofertilidade – especialidade médica que ajuda os pacientes cancerígenos a manterem sua fertilidade e terem filhos após venceram a doença.
Mas, para isso, é fundamental disseminar informação e humanizar o tratamento de combate a esse mal. A oncofertilidade mantém a capacidade reprodutiva de pacientes com câncer, mas, na maioria dos casos, ela só pode atuar antes do início das terapias contra os tumores.
“Muitas pessoas ficam inférteis após se submeterem a radioterapia, quimioterapia, ou cirurgias, a depender do câncer. Isso acontece por conta dos efeitos do tratamento, que, apesar de manterem a vida e a autonomia das pessoas, podem provocar danos irreversíveis no aparelho reprodutor, pela destruição de células nos ovários, testículos, lesões ou retirada do útero”, explica a especialista em reprodução assistida, Dra. Sofia Andrade, da Cenafert.
Oncofertilidade e Outubro Rosa
O Outubro Rosa é a campanha mundial de mobilização para o diagnóstico precoce do câncer de mama, um dos que mais acomete as mulheres. Cerca de 95% desses cânceres são curáveis se identificados na fase inicial. O autoexame do toque e a mamografia são imprescindíveis para isso.
O câncer de mama é um dos que apresenta maior potencial de prejudicar a fertilidade feminina. Por isso, é importante que, dentre as ações do Outubro Rosa, estejam o compartilhamento dos conhecimentos sobre a oncofertilidade e seu caráter preventivo. Cada vez mais mulheres precisam saber que o diagnóstico desse câncer não significa necessariamente o fim do sonho da gravidez.
“Você quer ser pai ou mãe”?
É essencial que, no momento do diagnóstico cancerígeno, o oncologista consulte o paciente sobre o desejo de ser pai ou mãe, o que muitas vezes não acontece. Essa iniciativa deve partir do médico, uma vez que a pessoa está suscetível a um turbilhão de emoções e preocupações e, mais focada em lutar pela própria vida, pode esquecer de assegurar sua aptidão de gerar outras.
“A pergunta ‘você quer ser pai ou mãe?’, muitas vezes, resolveria esse problema. Triste é perceber que esse simples gesto impediria uma série de frustações posteriores, às vezes, irreparáveis. É crucial os colegas oncologistas terem essa consciência”, relata Dra. Sofia Andrade.
O questionamento deve ser extensivo também aos pais, em casos de pacientes infantis ou adolescentes, por exemplo. “Já existem crianças nascidas a partir do congelamento experimental do tecido ovariano, retirado antes da terapia contra o câncer e reimplantados após a cura. É uma opção para crianças e mulheres que não entraram na puberdade e, portanto, ainda não ovularam”, relata Dra. Sofia. A oncofertilidade pode, portanto, preservar o sonho de ser mãe antes mesmo da pessoa ter maturidade para isso.
Ainda no caso das mulheres, a idade é um fator decisivo. Isso porque a reserva e qualidade dos óvulos diminui com o passar do tempo, mais notadamente a partir dos 35 anos. “Uma pessoa diagnosticada com câncer de mama aos 30 anos ou um pouco mais, por exemplo, após remover ou destruir o câncer ainda tem que passar por cinco anos de acompanhamento médico. Só depois disso ela está liberada para engravidar, numa idade em que sua capacidade reprodutiva já está comprometida. Daí a necessidade da oncofertilidade antes do início do combate efetivo ao câncer”, reforça Dra. Sofia Andrade.
Oncofertilidade não estimula o câncer de mama
A disseminação da informação também serve para derrubar preconceitos, como o de que a oncofertilidade pode agravar o câncer de mama, por exemplo. Apesar da indução ovariana, processo que estimula o desenvolvimento de óvulos para uso em técnicas de reprodução assistida ser à base de hormônios, não há risco deles estimularem a progressão do tumor. “Já estão estabelecidos rígidos protocolos para que isso não ocorra, que são absolutamente seguros”, pontua Dra. Sofia.
Para esclarecer: o estrogênio é o hormônio intimamente ligado ao câncer de mama e também é peça chave na ovulação. Em tese, estimular a ovulação, portanto, seria alimentar o câncer, certo? Errado. Isso porque, através de inibidores de aromatase (enzima envolvida na produção de estrogênio), a liberação de óvulos é garantida ao mesmo tempo que se controla o nível de estrogênio no organismo da paciente.
Oncologia de precisão de Oncofertilidade são aliados
A mortalidade por câncer nos EUA caiu 30% entre 1991 e 2017, de acordo com a American Cancer Society. É uma tendência em todo o mundo, em parte, graças às conquistas da oncologia de precisão e do desenvolvimento de modernas e eficazes técnicas de exame de rastreamento dos tumores, que os detectam cada vez mais cedo, ampliando significativamente as chances de cura.
A oncologia de precisão é uma área relativamente nova da medicina, que vem revolucionando o tratamento contra o câncer. Ela leva em consideração fatores individuais, como variabilidade dos genes, meio ambiente e estilo de vida de cada paciente, ao contrário das terapias tradicionais, generalistas, que recomendam o mesmo tipo de tratamento para grupos de pessoas com o mesmo quadro clínico.
Qualidade de vida pós-tratamento de câncer: missão gratificante
Já existem exames genéticos, por exemplo, que revelam se o organismo de um paciente metaboliza certas medicações antitumorais. Isso ajuda a definir qual será mais eficaz, já que os genes podem impactar no jeito em que o corpo processa a droga. Esses testes orientam os médicos a escolher os remédios e dosagens mais adequados para cada pessoa.
O horizonte para pacientes oncológicos é cada vez mais otimista. “Colaborar para garantir a qualidade de vida e a realização dos sonhos deles depois do tratamento, é uma das mais gratificantes missões da oncofertilidade”, relata Dra. Sofia Andrade.
Por que o tratamento de câncer afeta a fertilidade?
A imunoterapia é a estimulação do sistema imunológico que amplia a capacidade do corpo de enfrentar as doenças. Ela fortalece o corpo para combater células doentes ou as identifica como ameaça ao organismo.
Medicamentos imunoterápicos são utilizados contra o câncer, mas a toxicidade deles impacta na fertilidade pós-tratamento. A quimioterapia, por exemplo, elimina células tumorais, mas também às que se dividem velozmente, como as germinativas, que originam óvulos e espermatozoides, gametas responsáveis pela reprodução. Essas células podem morrer e sofrerem uma drástica redução.
As medicações imunoterápicas têm ação fitotóxica, ou seja, mudam a função ovariana, o que pode culminar na falência dos ovários, menopausa precoce ou outras dificuldades reprodutivas.
Como a oncofertilidade atua?
Processo em que células ou tecidos são preservados via congelamento em temperaturas baixíssimas (normalmente -196 ºC), a criopreservação ou crioconservação é o principal meio de preservar a fertilidade. O congelamento de espermatozoides, óvulos, embriões e tecido testicular e do ovário é feito antes do início do tratamento oncológico.
Congelamento de óvulos
A técnica mais comum de oncofertilidade para as mulheres é o congelamento de óvulos. Ele pode ser realizado de 12 a 14 dias antes do começo do tratamento de câncer. É o tempo necessário para induzir a ovulação, captar e congelar os gametas femininos maduros, ou seja, prontos para fecundação quando a mulher decidir e estiver liberada para engravidar.
Essa antecipação é essencial e reforça a importância do oncologista apresentar à paciente as possibilidades da oncofertilidade. A três dias do início da quimioterapia, por exemplo, não há como completar o ciclo de indução ovariana.
Depois de congelado em nitrogênio líquido, não há limitação de tempo para usar os óvulos. Mas é importante lembrar a questão da idade para a mulher. A gestação deve acontecer até os 50 anos, segundo os especialistas. Depois dessa idade, é muito difícil a gravidez vingar.
Congelamento de embriões
Se a mulher já tiver um parceiro, pode optar pelo congelamento de embriões, que são os óvulos já fecundados. Ela também passa pela indução ovariana. A diferença é que após a coleta dos óvulos eles já são fertilizados com espermatozoide em laboratório (Fertilização In Vitro) e, posteriormente, criopreservados.
Congelamento de tecido ovariano
Uma técnica que não demanda tanta antecipação à quimioterapia é o congelamento do tecido ovariano, uma técnica recente. A paciente é internada e tem parte do ovário retirado via videolaparoscopia, um procedimento menos invasivo que a cirurgia convencional. A alta é dada após 24 horas.
Depois do tratamento do câncer o tecido é reimplantado e o corpo volta a produzir óvulos. Especialistas alertam que, em tese, há o risco do reimplante conter célula cancerosa, uma vez que foi extirpado quando a pessoa estava doente. Mas isso não foi observado ainda. No mundo, cerca de 90 bebês já nasceram pelo método.
Supressão Ovariana
Outra alternativa pós-diagnóstico é a supressão ovariana. A mulher toma remédios para bloquear a produção de hormônios e entra temporariamente em menopausa. Em repouso, o ovário ficaria menos exposto à quimioterapia. Entretanto, a eficácia é discutível, porque, mesmo assim, as células do ovário podem ser atingidas pela quimioterapia.
Radioterapia, transposição dos ovários e proteção pélvica
A quimioterapia é o tratamento do câncer com uso de medicamentos. Já a radioterapia utiliza radiação ionizante para atacar as células doentes e causar o menor dano possível às células saudáveis das áreas vizinhas ao tumor.
Nos cânceres na região pélvica da mulher, no entanto, os ovários podem ser atingidos pelas sondas dos aparelhos de radioterapia, o que compromete sua reserva de óvulos.
Nesses casos, para preservar os ovários, a opção da oncofertilidade é a transposição ovariana. Trata-se de uma cirurgia minimamente invasiva (videolaparoscopia) que coloca os ovários por trás do útero ou em outro local distante, pelo período da radioterapia. Os ovários são recolocados no lugar de origem pelo mesmo método, após o tratamento.
Outra opção para proteger os ovários é a colocação de uma proteção pélvica, como mantas de chumbo, durante as sessões de radioterapia, a fim de proteger a região da radiação.
Útero de substituição
No caso da mulher ter optado pelo congelamento dos óvulos ou embriões antes do tratamento do câncer, mas ter o útero danificado por ele, ela pode ser mãe via útero de substituição. Pelo método, opta-se pela chamada barriga solidária, ou seja, alguém doa o útero para a gestação após a Fertilização In Vitro. No Brasil, essa doadora pode ser uma parente de até quarto grau da mãe e é proibido qualquer tipo de benefício financeiro.
Oncofertilidade para homens
O processo de preservação da fertilidade para os homens é relativamente bem mais fácil que para mulheres. Basicamente, basta fornecer sêmen para congelamento (via masturbação), o que não demanda o tempo de preparação ao que a mulher tem que se submeter a depender do método escolhido de oncofertilidade.
Se a primeira coleta não for satisfatória, ela pode ser repetida em cinco dias. Se o homem tiver azoospermia, ou seja, ausência de espermatozoide no sêmen, ele pode ser submetido a um pequeno procedimento cirúrgico para retirada dos gametas diretamente do testículo ou do epidídimo (punção testicular ou do epidídimo).
Para pacientes oncológicos meninos, que ainda não produzem espermatozoides, estão em curso pesquisas sobe a viabilidade do congelamento do tecido testicular, ainda sem resultados cientificamente comprovados como garantia de fertilidade.
Como o câncer afeta a fertilidade masculina?
Tumores nos testículos e linfoma de Hodgkin podem reduzir a quantidade de espermatozoides. O câncer de próstata também pode afetar a fertilidade, assim como qualquer outra infecção na área do aparelho reprodutor masculino.
Quimioterapia e terapia hormonal para o câncer de próstata podem cessar a produção de espermatozoides. Cirurgias de próstata, bexiga, intestino grosso, reto ou coluna também podem impactar na fertilidade, porque, se atingirem nervos, incapacitam a ejaculação ou causam ejaculação retrógrada, que leva o sêmen para a bexiga.