Entenda as causas e os principais tratamentos para casais que enfrentam perdas gestacionais recorrentes
Quando uma mulher engravida, o sonho de formar uma família se torna ainda mais real. Por isso, a dor de perder uma gestação, especialmente de forma repetida, é difícil de dimensionar. É um sofrimento que vai muito além do corpo. É silenciado, solitário e muitas vezes incompreendido.
A ginecologista e especialista em reprodução humana, Dra. Sofia Andrade, destaca que “a medicina avançou muito para compreender as causas do abortamento de repetição e criar caminhos de esperança”. Segundo ela, é essencial abordar o tema com escuta atenta e conhecimento atualizado, reconhecendo o impacto emocional e físico que essa condição provoca.
O que é considerado abortamento de repetição?
O abortamento de repetição é definido como duas ou mais perdas gestacionais consecutivas antes das 20 a 24 semanas. Embora seja uma condição que acomete entre 1% e 2% dos casais, isso não a torna menos devastadora.
Não há uma causa única e nem sempre há uma resposta clara logo no início. No entanto, especialistas defendem que a investigação adequada é essencial para apontar caminhos. “O mais importante é não seguir tentando no escuro. Cada perda deve ser levada a sério e investigada com profundidade”, afirma a Dra. Sofia.
As causas mais comuns
Os abortamentos de repetição podem ter origem multifatorial, ou seja, vários fatores podem coexistir e se somar. Uma investigação detalhada é essencial para compreender as causas e orientar o tratamento.
Causas genéticas envolvem alterações cromossômicas nos embriões, muitas vezes herdadas de um dos genitores, mesmo quando esse é assintomático. Translocações equilibradas entre os cromossomos 13, 14 e 21 são exemplos clássicos. Além disso, mutações genéticas que afetam a qualidade do espermatozoide também podem influenciar diretamente a viabilidade embrionária. Fatores ambientais, como tabagismo, consumo excessivo de álcool, obesidade e exposição a toxinas, podem comprometer a carga genética do sêmen e favorecer alterações embrionárias.
Fatores anatômicos uterinos, como septo uterino, útero didelfo, miomas submucosos e sinéquias, dificultam a implantação e o crescimento do embrião. Alterações como a adenomiose, uma condição em que o tecido endometrial invade o miométrio, também têm sido associadas a maiores taxas de perdas gestacionais.
Em casos de abortamento tardio, é importante investigar a incompetência istmo-cervical, que se caracteriza pela incapacidade do colo do útero de se manter fechado até o final da gestação. Essa condição costuma levar à perda entre o segundo trimestre e o início do terceiro.
Fatores imunológicos têm ganhado destaque na literatura científica. A presença de autoanticorpos, como os anticorpos antifosfolípides (lúpus anticoagulante, anticardiolipina e anti-ß2-glicoproteína I), pode provocar falhas na formação da placenta ou microtrombos que comprometem o suprimento sanguíneo ao embrião. Além disso, desequilíbrios nas células NK uterinas e nas citocinas são alvos de estudos recentes e estão detalhados em um artigo específico da Dra. Sofia sobre imunidade e fertilidade.
Distúrbios hormonais também podem dificultar a manutenção da gestação. O hipotireoidismo, por exemplo, é uma das causas endócrinas mais relevantes, assim como a fase lútea deficiente, a hiperprolactinemia, a resistência à insulina e a síndrome dos ovários policísticos (SOP).
Trombofilias hereditárias e adquiridas aumentam o risco de formação de coágulos na placenta, prejudicando a oxigenação do embrião. Entre elas, destacam-se as mutações no fator V de Leiden, protrombina G20210A e deficiências de antitrombina e proteína S.
Por fim, infecções uterinas crônicas, como a endometrite crônica, têm sido cada vez mais reconhecidas como causa de falhas na implantação e perdas precoces. Frequentemente associada a agentes como Mycoplasma, Ureaplasma e bactérias da flora vaginal desregulada, essa condição pode ser silenciosa e só detectada com biópsia endometrial e análise imuno-histoquímica.
Como é feita a investigação
A investigação é sempre individualizada e pode incluir uma série de exames complementares. Para avaliar causas genéticas, solicita-se o cariótipo do casal (análise dos cromossomos) e, em alguns casos, exames de biópsia de restos ovulares para identificar anomalias cromossômicas nos embriões perdidos.
No aspecto anatômico, utilizam-se ultrassonografia transvaginal com preparo endometrial, histerossalpingografia (HSG) e, principalmente, histeroscopia diagnóstica, que permite uma visualização direta e detalhada da cavidade uterina.
As causas hormonais são avaliadas com dosagens de TSH, T4 livre, prolactina, insulina, glicemia, LH, FSH, estradiol e progesterona em fase lútea.
Para investigar fatores imunológicos e hematológicos, são solicitados exames para síndrome antifosfolípide, painel de trombofilias hereditárias, homocisteína e anticorpos antinucleares.
A biópsia endometrial, com cultura e imuno-histoquímica, é indicada para diagnóstico de endometrite crônica. E, em casos de falhas repetidas na implantação, podem ser incluídos exames mais avançados, como o teste ERA (análise da receptividade endometrial).
Tratamentos: o que a medicina pode oferecer
A abordagem terapêutica depende diretamente da causa identificada na investigação. A seguir, estão listadas as principais opções de tratamento reconhecidas pela literatura científica:
- Cirurgias uterinas por histeroscopia
Alterações como septo uterino, miomas submucosos ou sinéquias podem ser corrigidas por procedimentos minimamente invasivos, como a histeroscopia cirúrgica. Um estudo publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology (2007) demonstrou melhora significativa na taxa de nascidos vivos após a remoção do septo uterino.
- Correção hormonal
Em casos de disfunções hormonais, como deficiência de progesterona ou hipotireoidismo, o tratamento inclui reposição hormonal e ajustes metabólicos. O estudo PROMISE Trial (New England Journal of Medicine, 2015) mostrou que o suporte com progesterona pode beneficiar subgrupos de pacientes com perdas gestacionais recorrentes.
- Tratamento de trombofilias e alterações imunológicas
Mulheres com síndrome antifosfolípide podem se beneficiar de protocolos com heparina e aspirina em baixa dose, como evidenciado em estudo publicado no Lancet (2004). O uso de imunoglobulina intravenosa (IVIG) é reservado para casos selecionados, conforme revisão sistemática publicada na Human Reproduction Update (2014).
- Fertilização in vitro com teste genético (PGT-A)
A FIV associada ao teste genético pré-implantacional para aneuploidias (PGT-A) é indicada para casais com alterações cromossômicas ou abortamentos de repetição sem causa definida. Esse método permite selecionar embriões euploides, aumentando as chances de sucesso gestacional. O estudo STAR, publicado no JAMA (2019), demonstrou resultados positivos em populações selecionadas.
- Ovodoação e uso de sêmen de doador
Essas opções são consideradas quando há mutações genéticas significativas ou falência ovariana precoce. Casos como o da atriz Gabrielle Union, amplamente divulgados na mídia, ajudam a normalizar essas escolhas reprodutivas.
- Suporte à implantação embrionária
Estratégias como a infusão de PRP (plasma rico em plaquetas), raspagem endometrial e suporte hormonal personalizado ainda estão em fase de validação, mas têm mostrado resultados promissores em estudos como o publicado no Journal of Assisted Reproduction and Genetics (2018).
- Suporte emocional e abordagem multidisciplinar
A vivência do abortamento de repetição tem repercussões emocionais profundas. O acompanhamento psicológico e o suporte de uma equipe interdisciplinar são essenciais. De acordo com o estudo de Lancaster & Boivin (2005), intervenções psicológicas adequadas melhoram a qualidade de vida e podem contribuir indiretamente para melhores resultados clínicos.
Um caminho mais claro
Nenhuma perda é pequena demais para ser investigada. Nenhuma história é parecida com a outra. A medicina reprodutiva tem hoje recursos que, quando usados com sabedoria, empatia e conhecimento, podem fazer a diferença entre o medo e a esperança.
E é nessa esperança que a gente se encontra.
Referências:
Causas e Investigações
- ESHRE Guidelines on Recurrent Pregnancy Loss (2023)
https://www.eshre.eu/Guidelines-and-Legal/Guidelines/Recurrent-Pregnancy-Loss
- Causes of recurrent pregnancy loss: evidence-based review — Human Reproduction Update
https://doi.org/10.1093/humupd/dms033
- Endometrial biopsy for chronic endometritis diagnosis in RPL — Fertility and Sterility
https://doi.org/10.1016/j.fertnstert.2010.08.002
Tratamentos hormonais
- Progesterone in Recurrent Miscarriages (PROMISE Trial) — New England Journal of Medicine
https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1504927
Trombofilias e imunologia
- Antiphospholipid antibodies and recurrent fetal loss — The Lancet
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(04)15835-4
- IVIG treatment in recurrent miscarriage: systematic review — Human Reproduction Update
https://doi.org/10.1093/humupd/dmu003
FIV e Teste Genético (PGT-A)
- STAR trial: Preimplantation Genetic Testing for Aneuploidy (PGT-A) — JAMA
https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2733187
- Aneuploidy and recurrent pregnancy loss — Fertility and Sterility
https://doi.org/10.1016/j.fertnstert.2007.12.041
Técnicas para falhas de implantação
- PRP infusion for endometrial receptivity — Journal of Assisted Reproduction and Genetics
https://doi.org/10.1007/s10815-018-1144-3
- Endometrial scratching and implantation rates — Cochrane Review
https://doi.org/10.1002/14651858.CD009517.pub4
Suporte emocional
- Psychological support in RPL: A clinical review — Human Fertility
https://doi.org/10.1080/14647273.2005.10708040
- Lancastle & Boivin (2005) — Coping with RPL
https://doi.org/10.1016/j.ejogrb.2004.11.035
Referência pública – caso Gabrielle Union
Gabrielle Union on surrogacy journey and repeated miscarriages — New York Times
https://www.nytimes.com/2018/10/17/style/gabrielle-union-book.html

