A reprodução assistida ajuda a derrubar barreiras biológicas que separam as pessoas do sonho de serem pais e mães. E tem ajudado também a derrubar o preconceito. Em 2011, a união estável entre casais gays foi liberada no Brasil pelo Supremo Tribunal de Federal (STF). Depois disso, em 2013, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou os casais homossexuais a gerarem filhos através da reprodução assistida. Desde então, as clínicas especializadas, como a Cenafert, onde atende a especialista Dra Sofia Andrade, abriram suas portas para acolher, orientar e realizar o desejo desse público de ampliar suas famílias.
Neste artigo, vamos tratar da reprodução assistida para casais gays masculinos e tirar todas as suas dúvidas, junto com a Dra Sofia. Quem pode ser a doadora do útero para a gestação? É possível pagar por uma “barriga de aluguel”? Quem oferece o útero também pode doar o óvulo? E se nenhum dos pais for fértil, o que fazer? O útero solidário tem algum direito legal sobre a criança, após o parto? Inseminação artificial ou fertilização in vitro, qual o método utilizado?
De quem pode ser o útero solidário para casais gays?
Ainda não existe uma lei no Brasil que regulamente a reprodução assistida, mas as regras foram definidas pelo Conselho Federal de Medicina. No caso dos casais gays, o CFM determina que o útero de substituição ou solidário, antigamente conhecido como “barriga de aluguel”, seja de alguém com até o quarto grau de parentesco com um dos membros do casal. Pode, portanto, ser a mãe, avó, irmã, tia ou prima. Para diminuir os riscos à saúde dela e do bebê, a mulher tem que ter, no máximo, 50 anos.
Quem não é parente de um dos pais pode doar o útero? “Sim, contanto que seja alguém comprovadamente muito próximo a um dos pais. Entretanto, cada caso precisa ser submetido a uma rígida avaliação e posterior aprovação do CFM”, explica Dra Sofia Andrade.
A exigência desse vínculo familiar ou afetivo busca evitar a comercialização. Para esclarecer: em qualquer hipótese, é expressamente proibido o interesse financeiro na doação do útero. O mais importante: não pode haver remuneração, de forma alguma. A Lei nº 9.434/97, que rege sobre a proibição da venda de órgãos e tecidos humanos no Brasil, prevê pena de três a cinco anos de prisão para mulheres que cobrem pelo aluguel de seus úteros.
Direitos e responsabilidades dos casais gays e da barriga solidária
Todos os envolvidos no processo precisam assinar um termo de consentimento informado. O documento confere aos pais a total responsabilidade pelo bebê e pelos custos decorrentes da gestação. A doadora se compromete a seguir as recomendações médicas e entregar a criança depois do parto. Se a dona da “barriga solidária” for casada ou estiver numa união estável, o companheiro também precisa ser signatário desse acordo.
É importante salientar que a doadora do útero e a dos óvulos são diferentes, justamente para que a criança não tenha a carga genética da dona da “barriga solidária”, o que, biologicamente, caracteriza a maternidade. A doadora do óvulo, portanto, não pode ter a identidade conhecida nem pelos pais e nem para a criança. Falaremos mais sobre ela aqui.
“Oferecer o útero para gerar uma vida que vai ser cuidada por terceiros é um ato de amor, repleto de cumplicidade, solidariedade e generosidade. É assim que deve ser encarado. Um gesto de humanidade”, diz a Dra. Sofia Andrade.
E a relação da doadora do útero como a criança, pós-nascimento, como fica? “Geralmente é como a de uma madrinha, muito especial, e um afilhado. Acaba-se criando um vínculo ainda mais forte entre a doadora, seja ela parente ou amiga, e os pais. Pela minha experiência, eu diria que é uma parceria muito saudável na absoluta maioria das vezes”, relata Dra Sofia.
Avaliação física e psicológica dos pais
O primeiro passo para os homens do casal gay é a avaliação psicológica. É preciso verificar as motivações deles, a solidez da relação, as perspectivas sobre a criação da criança e como pretendem comunicá-la sobre o método como ela foi gerada, entre outros fatores.
Correndo tudo bem, parte-se para a análise clínica do casal gay, para saber se os pais estão saudáveis. São feitos testes como o do HIV, por exemplo. É realizada ainda uma pesquisa genética para verificar o risco de malformação no bebê. O esperma dos pais também é analisado, via espermograma, para checar qualquer tipo de alteração que impacte a fertilidade.
Bancos de sêmen
Se for detectado que um dos pais tem algum tipo de problema, consequentemente, deve-se recorrer a um banco de sêmem. “Pode-se optar por um desses bancos no Brasil ou no exterior. Um dos requisitos impostos pelo CFM é que haja um pareamento, ou seja, semelhança entre características físicas dos pais e do doador do sêmem, como cor dos olhos ou da pele, por exemplo”, esclarece Dra Sofia Andrade.
A vantagem dos bancos extrangeiros é que eles oferecem uma gama maior de informações. No Brasil, é possível conhecer até sete particularidades físicas ou psicológicas de quem doa. Fora do país, por outro lado, esse número é cinco vezes maior – são 35 os atributos acessíveis. Em contrapartida, o serviço é mais caro.
É essencial a participação de um especialista em reprodução assistida na escolha do banco de sêmem. É ele que tem a autoridade necessária para checar a procedência da instituição e, consequentemente, verificar se ela cumpre as normas estabelecidas no que diz respeito ao armazenamento, transporte das amostras dos espermatozoides, histórico pessoal e familiar dos doadores.
Caso não haja qualquer problema de infertilidade com os pais, ambos podem fornecer sêmem para a fertilização, ou apenas um deles. A decisão é do casal. Se os dois doarem, a criança tem o direito de saber, posteriormente, de quem foi o espermatozoide fecundado para a geração dele, ou seja, saber quem é o pai biológico.
Cuidados com a doadora do útero
A dona da barriga solidária também é submetida a uma bateria de exames antes de receber o embrião. Além de HIV, são feitos testes para detectar sífilis e hepatite, por exemplo.
É preciso saber também se a mulher já teve abortamento de repetição, ou seja, pelos menos duas interrupções da gravidez antes do período que compreende a 20ª e 22ª semana. O abortamento pode ser provocado por causas genéticas, infecções, colo do útero curto, malformações, alterações hormonais, na forma do útero ou no DNA do espermatozoide, fatores imunológicos e trombofilias.
Nesses casos, é feita uma investigação na doadora para detectar a causa do abortamento e se vai ser possível tratá-la ou desaconselhar a gravidez.
Outro aspecto importante é a compatibilidade do tipo sanguíneo entre a doadora do útero e o bebê. Se a criança tiver fator RH positivo e a doadora, o RH negativo, por exemplo, o corpo da mulher pode interpretar o embrião como intruso e, consequentemente, começar a trabalhar para expulsá-lo do corpo.
A ovodoação
Os óvulos para fecundação de gravidez de casais homoafetivos são obtidos através de bancos de óvulos. Geralmente eles funcionam dentro das próprias clínicas de reprodução assistida, como a Cenafert, em Salvador, onde trabalha Dra Sofia Andrade.
No Brasil, a ovodoação ou doação de óvulos, pode ser feita por mulheres de até 35 anos. A partir dessa idade a fertilidade feminina começa a diminuir e, consequentemente, as chances de engravidar também. Isso acontece porque, com o passar do tempo, os óvulos envelhecem e passam a ser liberados com qualidade menor, o que significa mais dificuldade para se dividir em um embrião.
“Para preservar a fertilidade, é importante que mulheres jovens procurem uma clínica de reprodução assistida e congelem óvulos para uso posterior no ciclo da fertilização in vitro”, ressalta a Dra Sofia Andrade.
A regulamentação do Conselho Federal de Medicina estabelece, em suma, que também não pode haver caráter lucrativo ou comercial na ovodoação e que doadores e receptores não saibam a identidade uns dos outros.
Tratamento compartilhado
O CFM permite que mulheres que estão em tratamento de reprodução assistida com seus próprios óvulos possam doar parte do material coletado para outra pessoa, ou seja, a doação compartilhada de óvulos. É quando uma mulher capaz de produzir uma quantidade de óvulos superior à que precisa no seu tratamento cede parte deles para alguém com produção insuficiente.
A doadora, nesse caso, não é remunerada, mas os custos do seu tratamento são reduzidos a partir do momento em que ela ajuda outro casal a realizar o sonho da gravidez. Acima de tudo, deve ser respeitada a regra de sigilosidade, já citada anteriormente.
Fertilidade da doadora de óvulos
Além dos exames clínicos, uma potencial doadora de óvulos precisa ter sua fertilidade avaliada. É fundamental, acima de tudo, saber a quantidade de folículos presentes nos ovários dela. Para esclarecer: folículos são estruturas que contém os óvulos e são importantes indicadores de fertilidade. Quanto mais folículos, portanto, mais fértil é a mulher.
A reserva ovariana é verificada por ultrassonografia transvaginal para contagem dos folículos antrais (CFA) e de dosagens hormonais. Para esclarecer: folículos antrais são aqueles em estado inicial que podem conter um óvulo imaturo, mas com capacidade para se desenvolver.
Tais exames estimulam os parâmetros de fertilidade e mostram, portanto, se a mulher está apta ou não a doar óvulos, além de indicar para o especialista a melhor forma de conduzir a fertilização.
Doar o óvulo dói?
O processo de doação do óvulo dura aproximadamente 15 dias. Em primeiro lugar, a mulher é estimulada a ovular, via administração de hormônio folículo-estimulante (FSH). Enquanto isso, a ovulação é controlada por ultrassonografia e exame de sangue, por cerca de 10 dias. Posteriormente, quando os folículos atingem o tamanho ideal, ou seja, cerca de 20 mm de diâmetro, é provocado o amadurecimento dos óvulos contidos nesses folículos, através do hormônio hCG.
Após aproximadamente 35 horas, um líquido é retirado dos folículos via punção – é essa solução que contém os óvulos. A coleta dura cerca de meia-hora e é feita com uma agulha. A paciente não sente dor, pois está anestesiada. Depois disso, os óvulos são congelados.
Fertilização in Vitro para casais gays, por quê?
Na gravidez de casais gays masculinos, a reprodução é feita pelo método da fertilização in vitro. É quando o óvulo é fecundado pelo espermatozoide fora do corpo, num tubo de ensaio, ou seja, in vitro (vidro, em latim). Também conhecido como “Bebê de Proveta”, é o meio de reprodução assistida mais popular no mundo.
Para esclarecer: esse método é utilizado porque a criança não pode ter a carga genética da doadora do útero, como já tratamos aqui. Por isso, é utilizado o óvulo e outra mulher, de identidade desconhecida. Só é possível fazer a inseminação fora do corpo através da fertilização in vitro.
O sêmen para a fertilização in vitro é obtido via bancos, como já explicamos aqui, ou pela coleta de um ou ambos os integrantes do casal. No laboratório, a amostra é coletada e o homem deve estar sem ejacular há dois dias, para aumentar a concentração de espermatozoides no líquido seminal.
Também no laboratório, ocorre a inseminação, quando o espermatozoide é inserido no óvulo para que ocorra a fertilização. A partir daí, os óvulos são monitorados para ver se o embrião é formado, já no dia seguinte. Depois disso, inicia-se a divisão celular e os embriões se desenvolvem por cerca de cinco dias, até a fase chamada de blastocisto, ou seja, quando eles estão prontos para serem transferidos para o útero. Essa transferência é relativamente simples e a mulher nem precisa se internar para realizá-lo.
Casais gays: gravidez, pós-parto e amamentação
Na reprodução de casais gays masculinos, é indispensável, acima de tudo, o envolvimento do trio na gestação – pais e dona do útero solidário. “Além das garantias financeiras, esse vínculo emocional, de parceira, entre os três é essencial para uma gestação mais tranquila possível”, ressalta Dra Sofia Andrade.
Durante todo o processo o trio recebe acompanhamento psicológico. Após o parto, a criança pode ser amamentada pela doadora do útero ou ela cede o leite periodicamente para armazenamento. Depende do acordo entre as partes.
O documento firmado legalmente entre os pais e a barriga solidária deixa bem claro o direto dos doadores da carga genética sobre a criança, assim como suas responsabilidades em relação ao Direto da Família e de Sucessões. Para esclarecer: na certidão de nascimento do bebê não consta qualquer tipo de informação sobre a doadora do útero.
“Para a mulher, é muito recompensadora a sensação de colaborar ativamente para a construção de uma família. É esse sentimento que tem que guiá-la a participar de um processo como esse. É extremamente gratificante e transformador”, relata Dra Sofia.